Umas e outras

Meu Filho Sem Nome
Como coordenadora do Grupo Acesso, do Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo, quero, inicialmente, agradecer à autora Izilda Fontainha Simões, pela confiança depositada em nossa experiência. Esse grupo de 20 psicanalistas se dedica, há 15 anos, ao estudo, à pesquisa e às múltiplas intervenções nos processos subjetivos envolvidos com a adoção de crianças e adolescentes e, sobretudo, às complexas questões da institucionalização da criança, entendida como uma das Medidas de Proteção à Infância.
Pretendendo uma atuação que se dá em rede com os equipamentos sociais voltados à promoção da infância, o Grupo Acesso realiza: atendimentos clínicos e psicoterápicos a pessoas que se encaminham para uma adoção; aos pais adotivos; às crianças e adolescentes adotivos ou abrigados; e também efetua intervenções em âmbitos mais amplos, como p.ex. organizando e coordenando variados grupos de estudos, cursos e assessorias no contexto do judiciário junto a seus profissionais técnicos, psicólogos e assistentes sociais.
Nossas intervenções junto às instituições de acolhimento têm como preocupação a sustentação da subjetividade da criança abrigada, essa que sofreu graves agressões ao vínculo primordial, seja por abandono ou situações de violência. Essas intervenções realizadas com os educadores de abrigos visam a propiciar espaços de reflexões necessárias dentro de uma perspectiva de formação continuada.
Tendo em vista essa perspectiva de trabalho em que a complexidade das questões contidas no tema da adoção ultrapassa os limites da atuação clínica e assume notável relevância social, o convite de Izilda para acompanhá-la no processo de criação de seu texto, nos instigou.
Considero que na origem de toda adoção estão como fundamentos a entrega ou o abandono da criança por um lado e, as motivações de alguém que a adota, por outro. Dessa forma, pode-se dizer que uma adoção começa sempre a partir de perdas: para a mãe que entrega o filho, para a criança que perde o vínculo com a família original e para os pais adotivos que não conseguiram conceber o filho biológico. Essa contingência suscita mobilizações psíquicas específicas em todos os envolvidos, uma vez que são experiências que remetem ao sentimento de desamparo, ao abandono e aos sentimentos de rejeição. Desordens sociais, desencontros afetivos que a cultura e a sociedade de cada época tentarão reparar através da adoção.
O tripé necessário para que uma adoção ocorra é então formado pelos atores desse cenário: a mãe biológica, a criança e os adotantes. É aqui que se insere a importância desta peça de teatro, uma vez que o texto de Izilda corajosamente atribui um papel para a mãe biológica, dando-lhe uma fala e um Lugar nesse cenário, Lugar que a sociedade reserva à exclusão e à condenação moral.
Sobre a mãe que entrega, quase não há trabalhos e pesquisas que  investiguem a dinâmica interna da decisão de se separar do filho, bem como o seu estado e dinâmica psicológicos após a entrega. Suas necessidades, e os motivos que influenciaram na entrega do filho em adoção, em geral, são ignorados, muitas vezes desconhecidos. Não sabemos, na maioria das vezes, quem são essas mulheres, a que classe elas pertencem, se elas próprias passaram por situações da adoção ou do abandono.
Se a entrega de um filho em adoção é o momento a partir do qual tudo começa, há um caminho a ser aberto, merecedor de atenção para que se alcance a compreensão das condições e necessidades dessas mães ignoradas. A meu ver, nesse sentido, a peça tem o mérito de romper as barreiras impostas pelo silêncio da questão e suscitar reflexões.
O abandono de filhos é uma prática antiga na humanidade. As histórias bíblicas, as infantis e os mitos, trazem, amiúde, essa dura e triste realidade... E a adoção pode sim ser uma saída plenamente possível e criativa para situações de abandono da criança. Porém, não deve ser tomada naturalmente como a única saída. Cabe aqui ressaltar a importância da existência de políticas públicas e programas sociais que ajudem a garantir o direito primeiro de toda criança de crescer e se desenvolver dentro de seu núcleo familiar de origem. Ou de outros programas voltados para orientação e acompanhamento do desejo genuíno de algumas mães que, devido a uma variedade de motivos não podem ou não conseguem ficar com o filho.  A entrega de um filho também pode ser compreendida como um gesto amoroso.
A peça “Meu Filho Sem Nome” tem a importância de dar voz a essa difícil problemática. Seu texto coloca palavras onde o social silencia ou então rapidamente condena. Ao evidenciar o sofrimento de “Cris”, a adolescente que inesperadamente se vê grávida, Izilda nos convida a adentrar em seu mundo subjetivo, para conhecer suas angústias, e suas dúvidas. Com uma imensa delicadeza, nos convoca a uma aproximação com sua realidade. Desvenda alguns dos enigmas que a levam a não ficar com aquela criança, um convite para nos despir de alguns pré-conceitos.
A presença de mulheres que entregam seus filhos em adoção nos remete ao abandono, que significa uma desordem para o estereótipo que consagra os valores atribuídos à maternidade, em cada mulher.  O abandono de uma criança deflagra problemas institucionais, éticos, políticos e socioculturais, mas, sobretudo, mobiliza em todos nós angústias inomináveis ligadas ao desamparo primordial que nos constitui como humanos. Em síntese, nos remete ao nosso próprio abandono. A decisão de se separar do filho para entregá-lo a quem possa dele cuidar,   significa aceitar a impossibilidade para criá-lo. Porém, mesmo considerando que a entrega do filho não é equivalente a abandoná-lo, a mãe biológica tende a ser descrita em nosso imaginário como a mulher que abandona, como um equivalente a uma “mãe má”. Talvez seja essa a razão pela qual sua existência, suas angústias e sua história precisem ser duramente apagadas.
É assim que “Meu filho Sem Nome” nos confronta com a experiência paradoxal da maternidade; experiência em que desejo e frustração parecem unir essas duas mulheres: Cris e Cida refletidas em momentos e realidades opostas.
Se “a vida imita a arte”, como se diz, o drama vivido por essas mulheres tão parecidas, nos leva a férteis indagações: Será o que elas vivenciam algo inerente ao materno? Será algo próprio da experiência com adoção? Ou será algo tão apenas inerente ao existir humano?
Lembrei-me de uma bela estrofe de uma música do Chico (“Umas e outras”), poeta que traduz magistralmente a alma feminina. A música é “Umas e outras”, e ele diz:
“Mas toda santa madrugada
Quando uma já sonhou com Deus
E a outra, triste namorada
Coitada, já deitou com os seus
O acaso faz com que essas duas
Que a sorte sempre separou
Se cruzem pela mesma rua
Olhando-se com a mesma dor
Que dia! Cruzes, que vida comprida
Pra que tanta vida pra gente desanimar”
Parabéns Izilda. Parabéns a todos que fizeram essa realização possível!
Obrigada!
Maria Luiza Ghirardi - psicoterapeuta coordenadora do Grupo Acesso - Estudos, Intervenção e Pesquisa em Adoção, da Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo.

Umas e outras - Chico Buarque

http://www.youtube.com/watch?v=RK29sRGRYo0

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